J'ai dit facile et ce qui est facile
C'est la fidélité.
Paul Éluard

A José Júlio Maciel Chaves,
engenheiro silvicultor,
morto em Goa, assassinado em Satari.

A Artur do Canto Resende,
engenheiro geógrafo,
morto em Dili, assassinado em Alvor. 


1.

O mar tem fundos nus de areia fina
E poentes toldados pela neblina.
Eu não tenho nada,
Vazio
— Homem frente ao mar que despedaça
Inenarráveis construções do espírito.
E lanço pedras na espuma,
Só, absorto no espaço,
Sem palavras, nem sequer palavras
Devassadas.

Preso às formas que me chamam
No limiar da ausência
Que antecede os silêncios da angústia.
E corro para elas para que se apaguem os rastos
De uma presença efémera, indesejável.
E volto, pés molhados, praia fora,
Com algas entre os dentes,
E pedaços de verso amarrotados. 


2.

A paz que não encontro satisfaz-me.
Caminho, mas tropeço. E o verde vinho
Azedo que me dão, não o recuso:
Outros bebê-lo-ão, outros ainda
Antes de mim tragaram-no. E o mundo
Ora fluxo-refluxo, ora imutável,
Como cidade ao longe entre colinas,
Obstina-se a chamar e a dar
Reflexos que não aprofundo,
Sinais de afinidade que não pretendo, nem desfaço.
Eu respeito os mortos. 


3.

Ser ou não ser é pão que não discuto
De tão abjecto o preço
Ou nula a vibração.
Não discuto, mas há que comê-lo
Com náusea.
É ritual de porcos contraposto
À consciência. A água
Correu nas fontes,
segundo a História.
A que bebemos vem desinfectada
Ou em bilhas lacradas.
Doce, suave, cristalina
— Só na memória salgada —

É a que bebem os mortos,
afogados.
E a paixão que me domina
Ou dela a imagem — anjo inominado —
Não é aparência rara,
Mas simplesmente inefável
Visitação.


4.

Senhora da Hora, vela
Pacientemente e sempre,
Por todos nós, pelo meu irmão
desencontrado
E assassinado.
Por aquele que entre florestas antagónicas
Cumpriu o seu dever de lábios mudos.
E pelo outro, maduro como um fruto
Sazonado nos pântanos.
Por mim que me sinto revoltado,

Surdo a deleites fictícios,
Porque não espero e quero
Ser empreiteiro do mundo
Neste lugar circunscrito onde sonhei, penei,
Desde o tempo em que as palavras tomaram o gosto
Dos braços que se estendem e das mãos que se apertam.
Senhora!
A Hora pertence-te.


5.

Lágrimas são a chuva que nos molha
A vida inteira.
As alegrias são
As ilusões que fenecem
A vida inteira.
Dou de costas à luz.
Calmo contemplo
Os horizontes perdidos.
O mar tem fundos nus de areia fina.
Cristo morreu na cruz.

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Sunt lachrimae rerum
in IV | O livro do nómada meu amigo
1958
[Odes marítimas / Odes maritimes |
1997 | bilingual | ed: Assírio & Alvim |
transl: Nicole Siganos]
Ruy Cinatti

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