Quem pode ser no mundo tão quieto,
Ou quem terá tão livre o pensamento,
Quem tão exprimentado e tão discreto,
Tão fora, enfim, de humano entendimento
Que, ou com público efeito ou com secreto,
Lhe não revolva e espante o sentimento,
Deixando-lhe o juízo quase incerto,
Ver e notar do mundo o desconcerto?

Quem há que veja aquele que vivia
De latrocínios, mortes e adultérios,
Que ao juízo das gentes merecia
Perpétua pena, imensos vitupérios,
Se a Fortuna em contrário o leva e guia,
Mostrando, enfim, que tudo são mistérios,
Em alteza de estados triunfante,
Que, por livre que seja, não se espante?

Quem há que veja aquele que tão clara
Teve a vida, que em tudo por perfeito
0 próprio Momo às gentes o julgara,
Ainda que lhe vira aberto o peito,
Se a má Fortuna, ao bem somente avara,
0 reprime e lhe nega seu direito,
Que lhe não fique o peito congelado,
Por mais e mais que seja exprimentado?

Demócrito dos deuses proferia
Que eram só dous: a Pena e Benefício.
Segredo algum será da fantasia,
De que eu achar não posso claro indício;
Que, se ambos vêm por não cuidada via
A quem os não merece, é grande vício
Em deuses sem-justiça e sem-razão.
Mas Demócrito o disse, e Paulo não.

Dir-me-eis que, se este estranho desconcerto
Novamente no mundo se mostrasse,
Que, por livre que fosse e mui esperto,
Não era de espantar se me espantasse;
Mas que se já de Sócrates foi certo
Que nenhum grande caso lhe mudasse
O vulto, ou de prudente, ou de constante,
Que tome exemplo dele, e não me espante.

Parece a razão boa; mas eu digo
Que este uso da Fortuna tão danado
Que, quanto mais usado e mais antigo,
Tanto é mais estranhado e blasfemado.
Porque se o Céu, das gentes tão amigo,
Não dá à Fortuna tempo limitado,
Não é para causar mui grande espanto
Que mal tão mal olhado dure tanto.

Outro espanto maior aqui me enleia;
Que, conquanto Fortuna tão profana
Com estes desconcertos senhoreia,
A nenhuma pessoa desengana.
Não há ninguém que assente nem que creia
Este discurso vão da vida humana,
Por mais que filosofe nem que entenda,
Que algum pouco do mundo não pretenda.

Diógenes pisava de Platão,
Com seus sórdidos pés, o rico estrado,
Mostrando outra mais alta presunção
Em desprezar o fausto tão prezado.
— Diógenes, não vês que extremos são
Esses que segues de mais alto estado
Que, se de desprezar te prezas muito,
Já pretendes do mundo fama e fruito?

Deixo agora reis grandes, cujo estudo
É fartar esta sede cobiçosa
De querer dominar e mandar tudo,
Com fama larga e pompa sumptuosa.
Deixo aqueles que tomam por escudo
De seus vícios e vida vergonhosa
A nobreza de seus antecessores,
E não cuidam de si que são piores.

Deixo aquele a quem o sono esperta
Do grão favor do rei que serve e adora,
Que se mantém desta aura falsa, incerta,
Que dos corações tanto é senhora.
Deixo aqueles que estão coa boca aberta,
Por se encher de tesouros, de hora em hora
Doentes desta falsa hidropisia
Que, quanto mais alcança, mais queria.

Deixo outras obras vãs do vulgo errado,
A quem não há ninguém que contradiga,
Nem de outra cousa alguma é subjugado
Que de uma opinião e usança antiga.
Mas pergunto ora a César esforçado,
Ou a Platão divino, que me diga:
Este, das muitas terras em que andou,
Estoutro, de vencê-las, que alcançou?

César dirá: — Sou digno de memória;
Vencendo vários povos esforçados
Fui monarca do mundo; e larga história
Ficará de meus feitos sublimados.
É verdade; mas esse mando e glória
Lograste-o muito tempo? Os conjurados
Bruto e Cássio o dirão que, se venceste,
Enfim, enfim, às mãos dos teus morreste.

Dirá Platão: — Por ver o Etna e o Nilo
Fui a Sicília, ao Egipto e a outras partes,
Só por ver e escrever em alto estilo
Da natural ciência em muitas artes.
— O tempo é breve, e queres consumi-lo
Platão, todo em trabalhos; e repartes
Tão mal de teu estudo as breves horas
Que, enfim, do falso Febo o filho adoras?

Pois quando deste mundo está apartada
A alma da prisão terrestre e escura,
Está em tamanhas cousas ocupada
Que da Fama que fica, nada cura.
Pois se o corpo terreno sinta nada
O Cínico o dirá se porventura
No campo, onde deitado morto estava,
De si os cães e as aves enxotava.

Quem tão baixa tivesse a fantasia
Que nunca em mores cousas a metesse
Que em só levar seu gado à fonte fria
E mungir-lhe do leite que bebesse!
Quão bem-aventurado que seria!
Que, por mais que Fortuna revolvesse,
Nunca em si sentiria maior pena
Que pesar-lhe da vida ser pequena.

Veria erguer do sol a roxa face,
Veria correr sempre a clara fonte,
Sem imaginar a água donde nace,
Nem quem a luz esconde no horizonte.
Tangendo a frauta donde o gado pace,
Conheceria as ervas do alto monte;
Em Deus creria, simples e quieto,
Sem mais especular nenhum secreto.

De um certo Trasilau se lê e escreve,
Entre as cousas da velha antiguidade,
Que perdido um grão tempo o siso teve
Por causa de uma grande enfermidade;
E enquanto, de si fora, doudo esteve,
Tinha por teima e cria por verdade,
Que eram suas as naus que navegavam,
Quantas no porto Pireo ancoravam.

Por um senhor mui grande se teria
(Além da vida alegre que passava),
Pois nas que se perdiam não perdia,
E das que vinham salvas se alegrava.
Não tardou muito tempo quando, um dia,
Um Crito, seu irmão, que ausente estava,
À terra chega; e vendo o irmão perdido,
Do fraternal amor foi comovido.

Aos médicos o entrega, e com aviso
O faz estar à cura refusada.
Triste, que por tornar-lhe o caro siso
Lhe tira a doce vida descansada!
As ervas apolíneas, de improviso,
O tornam à saúde atrás passada.
Sisudo, Trasilau ao caro irmão
Agradece a vontade, a obra não.

Porque, depois de ver-se no perigo
Dos trabalhos a que o siso lhe obrigava,
E depois de não ver o estado antigo
Que a vã opinião lhe apresentava,
— Ó inimigo irmão, com cor de amigo,
Para que me tiraste (suspirava)
Da mais quieta vida e livre em tudo
Que nunca pode ter nenhum sisudo?

Por que rei, por que duque me trocara?
Por que senhor de grande fortaleza?
Que me dava que o mundo se acabara,
Ou que a ordem mudasse a natureza?
Agora é-me pesada a vida cara;
Sei que cousa é trabalho e que tristeza.
Torna-me a meu estado, que eu te aviso
Que na doudice só consiste o siso.

Vedes aqui, Senhor, mui claramente
Como Fortuna em todos tem poder,
Senão só no que menos sabe e sente,
Em quem nenhum desejo pode haver.
Este se pode rir da cega gente;
Neste não pode nada acontecer;
Nem estará suspenso na balança
Do temor mau, da pérfida esperança.

Mas se o sereno Céu me concedera
Qualquer quieto, humilde e doce estado,
Onde com minhas Musas só vivera,
Sem ver-me em terra alheia degradado;
E ali outrem ninguém me conhecera,
Nem eu conhecera outrem mais honrado,
Senão a vós, também como eu contente,
Que bem sei que o seríeis facilmente;

E ao longo de uma clara e pura fonte,
Que, em borbulhas nascendo, convidasse
Ao doce passarinho que nos conte
Quem da cara consorte o apartasse;
Depois, cobrindo a neve o verde monte
Ao gasalhado o frio nos levasse,
Avivando o juízo ao doce estudo,
Mais certo manjar de alma, enfim, que tudo;

Cantara-nos aquele que tão claro
O fez o fogo da árvore febeia,
A qual ele, em estilo grande e raro
Louvando, o cristalino rio enfreia;
Tangera-nos na frauta Sannazaro,
Ora nos montes, ora pela aldeia;
Passara celebrando o Tejo ufano
O brando e doce Lasso castelhano;

E connosco também se achara aquela,
Cuja lembrança e cujo claro gesto
Na alma somente vejo (porque nela
Está em essência, puro e manifesto,
Por alta influição de minha estrela),
Mitigando o firme peito honesto,
Entretecendo rosas nos cabelos,
De que tomasse a luz o Sol em vê-los;

E ali, enquanto as flores acolhesse,
Ou pelo Inverno ao fogo acomodado,
Quanto de mim sentira nos dissesse,
De puro amor o peito salteado:
Não pedira eu então que Amor me desse
De Trasilau o insano e doudo estado,
Mas que então me dobrasse o entendimento,
Por ter de tanto bem conhecimento.

Mas para onde me leva a fantasia?
Porque imagino em bem-aventuranças
Se tão longe a Fortuna me desvia,
Que inda me não consente as esperanças?
Se um novo pensamento Amor me cria
Onde o lugar, o tempo, as esquivanças
Do bem me fazem tão desamparado
Que não pode ser mais que imaginado?

Fortuna, enfim, co Amor se conjurou
Contra mim, por que mais me magoasse:
Amor a um vão desejo me obrigou,
Só para que a Fortuna mo negasse.
A este estado o tempo me achegou,
E nele quis que a vida se acabasse;
Se há em mim acabar-se, que eu não creio,
Que até da muita vida me receio.

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Sobre o desconcerto do mundo
in Ode, Oitavas, Canções
n.d.
[Versos e alguma prosa de Luís de Camões
- selecção de Eugénio de Andrade | 1996 |
ed: Campo das Letras]
Luís Vaz de Camões (1524-80)

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