Aquele mover de olhos excelente,
Aquele vivo espírito inflamado
Do cristalino rosto transparente;
Aquele gesto imoto e repousado,
Que estando na alma propriamente escrito,
Não pode ser em verso trasladado;
Aquele parecer que é infinito
Para se comprender de engenho humano,
0 qual ofendo em quanto tenho dito,
Me inflama o coração de um doce engano,
Me enleva e engrandece a fantasia,
Que não vi maior glória que meu dano.
Oh, bem-aventurado seja o dia
Em que tomei tão doce pensamento,
Que de todos os outros me desvia!
E bem-aventurado o sofrimento
Que soube ser capaz de tanta pena,
Vendo que o foi da causa o entendimento!
Faça-me, quem me mata, o mal que ordena;
Trate-me com enganos, desamores;
Que então me salva, quando me condena.
E se de tão suaves desfavores
Penando vive uma alma consumida,
Oh, que doce penar! Que doces dores!
E se uma condição endurecida
Também me nega a morte por meu dano,
Oh, que doce morrer, que doce vida!
E se me mostra um gesto brando e humano,
Como que de meu mal culpada se acha,
Oh, que doce mentir, que doce engano!
E se em querer-lhe tanto ponho tacha,
Mostrando refrear o pensamento,
Oh, que doce fingir, que doce cacha!
Assim que ponho já no sofrimento
A parte principal de minha glória,
Tomando por melhor todo o tormento.
Se sinto tanto bem só na memória
De vos ver, linda Dama, vencedora,
Que quero eu mais que ser vossa a vitória?
Se tanto vossa vista mais namora
Quanto eu sou menos para merecer-vos,
Que quero eu mais que ter-vos por senhora?
Se procede este bem de conhecer-vos
E consiste o vencer em ser vencido,
Que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?
Se em meu proveito faz qualquer partido,
Só na vista de uns olhos tão serenos,
Que quero eu mais ganhar que ser perdido?
Se meus baixos espritos, de pequenos,
Ainda não merecem seu tormento,
Que quero eu mais, que o mais não seja menos?
A causa, enfim, me esforça o sofrimento,
Porque, apesar do mal que me resiste,
De todos os trabalhos me contento;
Que a razão faz a pena alegre ou triste.
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Outra elegia
in Écloga, Elegias, Sextina
n.d.
[Versos e alguma prosa de Luís de
Camões - selecção de Eugénio de
Andrade | 1996 |
ed. Campo das Letras]
Luís Vaz de Camões (1524-80)
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