Só, como se fosse a primeira vez, eu trabalho a página, de um lado ao outro em branco. Todas as possibilidades de a ordenar, a sua própria cor em pleno coração do verso (repeti em voz alta: a sua própria cor, etc., e as duas vozes juntavam-se sem se sobreporem, distintas ambas no silêncio do quarto, embora eu procurasse a unidade, o Único!)

Sem ter a certeza de qual o resultado último, repeti esta experiência durante dois dias (o número, por enquanto, não é fundamental sem deixar de ser importante). Ao terceiro dia, durante o sono, descobri que tanto podia escrever da direita para a esquerda como de cima para baixo. Os resultados aproximavam-se, embora a dificuldade do processo apressasse a sua própria decomposição.

As ondas entravam pela porta do quarto. Flutuei, a princípio, procurando o horizonte pelas frestas da persiana, mas em breve dei por mim um metro abaixo do tecto, um metro abaixo do nível do mar. — Os motivos do poema multiplicados pela distância do fundo à superfície; não precisamente pela distância real, mas por um número que eu calculara (em função do ângulo desenhado pelo meu corpo com o chão).

A arte em contacto com a natureza — e eu só, eu em relação ao movimento da maré (o que um espírito filosófico designaria por relação imaginária, ou passagem da realidade ao mundo sobrenatural da qualidade poética).

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O todo é pôr a maior relação possível
in A noção de poema
1972
[50 Anos de poesia, antologia pessoal,
1972-2022 | 2022 | ed: Dom Quixote]
Nuno Júdice

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