Porquê escrever-te? quando os habitantes tributários do poema descem
as margens sombrias da ilicitude; e a luz gráfica da amargura tece os fios
dolorosos do sortilégio; e o corpo argiloso da vigilância
exala a corrupção articulada do duplo...
Eis porquê — porque as músicas doentes navegaram o outono
alpestre do sonho. Aí, junto aos afluentes febris da vigília, o rio murmurou
as vogais marítimas da emulação. Ele cantou um canto
primitivo. Este rio atravessa os vales
longitudinais da vocação. Ele tem o movimento glacial de uma madrugada
norueguesa. Ele é o configurador de eternos infinitos, o contacto litoral
com uma erosão improfícua — a transformação báltica dos grandes
vapores oceânicos na cordilheira votiva das pulsações meridionais. Ele espanta
o perfil sinuoso da influência. Ele resgatou
a proximidade periférica da conjunção. O rio, descendo pelas margens
brumosas do exílio.

Trata-se pois de dar contas. Nasci entre o choro
ininterrupto das fiandeiras e a sombra adriática
do desejo. Minha ama, de crina esculpida nos furores
de outubro, pressagiou-me o remorso amadurecido no litoral estéril
de um fruto melancólico. Estagnou no meu corpo a memória de uma infância
gutural. Não voltarei a ver o rosto amadurecido pelas maresias
atlânticas. Não voltarei a beber, nos degraus do cais, as palavras sonâmbulas

de um improvisador de desassossego. Não voltarei às margens ilúcidas
de uma solidão agitada. Tento coagular o nevoeiro solsticial
do instante. No entanto, eu sei que a alucinação não voltará a golpear
o silêncio enegrecido da época. Eis-me desabrigado — soletrando a acidez
trágica do poema.

Veio-me ao espírito esta página. Ela desce, como um rio,
para os largos estuários do amor.

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Itinerário (fragmento)
in A noção de poema
1972
[50 Anos de poesia, antologia pessoal,
1972-2022 | 2022 | ed: Dom Quixote]
Nuno Júdice

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