Manda-me Amor que cante docemente
O que ele já em minha alma tem impresso
Com pressuposto de desabafar-me;
E porque com meu mal seja contente,
Diz que ser de tão lindos olhos preso,
Contá-lo bastaria a contentar-me.
Este excelente modo de enganar-me
Tomara eu só de Amor por interesse,
Se não se arrependesse,
Com a pena o engenho escurecendo.
Porém a mais me atrevo,
Em virtude do gesto de que escrevo;
E se é mais o que canto que o que entendo,
Invoco o lindo aspeito,
Que pode mais que Amor em meu defeito.

Sem conhecer Amor viver soía,
Seu arco e seus enganos desprezando,
Quando vivendo deles me mantinha.
O Amor enganoso, que fingia
Mil vontades alheias enganando,
Me fazia zombar de quem o tinha.
No Touro entrava Febo, e Progne vinha;
O corno de Aquelóo Flora entornava,
Quando o Amor soltava
Os fios de ouro, as tranças encrespadas,
Ao doce vento esquivas,
Dos olhos rutilando chamas vivas,
E as rosas entre a neve semeadas,
Co riso tão galante
Que um peito desfizera de diamante.

Um não sei quê, suave, respirando,
Causava um admirado e novo espanto,
Que as cousas insensíveis o sentiam.
E as gárrulas aves levantando
Vozes desordenadas em seu canto,
Como em meu desejo, se encendiam.
As fontes cristalinas não corriam,
Inflamadas na linda vista pura;
Florecia a verdura
Que, andando, cos divinos pés tocava;
Os ramos se abaixavam,
Tendo inveja das ervas que pisavam,
(Ou porque tudo ante ela se abaixava).
Não houve cousa, enfim,
Que não pasmasse dela, e eu de mim.

Porque quando vi dar entendimento
Às cousas que o não tinham, o temor
Me fez cuidar que efeito em mim faria.
Conheci-me não ter conhecimento;
E nisto só o tive, porque Amor
Mo deixou, porque visse o que podia.
Tanta vingança Amor de mim queria
Que mudava a humana natureza:
Os montes, e a dureza
Deles, em mim por troca traspassava.
Oh que gentil partido,
Trocar o ser do monte sem sentido,
Pelo que num juízo humano estava!
Olhai que doce engano:
Tirar comum proveito de meu dano!

Assim que indo perdendo o sentimento
A parte racional, me entristecia
Vê-la a um apetite submetida;
Mas dentro na alma o fim do pensamento
Por tão sublime causa me dizia
Que era razão ser a razão vencida.
Assim que, quando a via ser perdida,
A mesma perdição a restaurava;
E em mansa paz estava
Cada um com seu contrário num sujeito.
Oh grão concerto este!
Quem será que não julgue por celeste
A causa donde vem tamanho efeito
Que faz num coração
Que venha o apetite a ser razão?

Aqui senti de Amor a mor fineza,
Como foi ver sentir o insensível,
E o ver a mim de mim mesmo perder-me;
Enfim, senti negar-se a natureza;
Por onde cri que tudo era possível
Aos lindos olhos seus, senão querer-me.
Depois que já senti desfalecer-me,
Em lugar do sentido que perdia,
Não sei que me escrevia
Dentro na alma coas letras da memória,
O mais deste processo
Co claro gesto juntamente impresso,
Que foi a causa de tão longa história.
Se bem a declarei,
Eu não a escrevo, da alma a trasladei.

Canção, se quem te ler
Não crer dos olhos lindos o que dizes,
Pelo que em si se esconde,
Os sentidos humanos, lhe responde,
Não podem dos divinos ser juízes,
[Senão um pensamento
Que a falta supra a fé do entendimento].

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Canção (outra)
[Manda-me Amor que cante
docemente]
in Ode, Oitavas, Canções
n.d.
[Versos e alguma prosa de Luís de
Camões - selecção de Eugénio de
Andrade | 1996 |
ed. Campo das Letras]
Luís Vaz de Camões (1524-80)

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