Aos meus amigos: Alberto Eduardo Plácido Camilo da Silveira José Coelho dos Santos Belo, depois de descer a montanha, encontra-se num formoso vale. Vê as ovelhas que esmaltam a tez carregada da montanha, como nacos movediços de pura neve que o sol dum dia ardente é incapaz de derreter. O céu azul embriaga-o. O silêncio alonga-lhe a alma numa meditação indecisa, como um clarão, ao longe, no oriente, que a gente não sabe se é uma fogueira longínqua, se as primeiras tintas da aurora dum novo sol que o infinito acabe de fecundar. Belo medita: Que paz e que sossego nesses vales Distantes da cidade... Até parece Que nós ali perdemos nossos males... E é tão doce essa paz que adormece Os nossos peitos de lutar cansados Com o murmúrio de doirada messe, Que julgamos quebrar, nesses valados, Com varinhas de fadas vaporosas, O véu azul de sonhos encantados... Ali nascem os lírios e as rosas, No doce mel de idílico noivado Com as brancas e puras mariposas... Quando ao longe surge o céu doirado Dos lábios cor-de-rosa do Oriente, Como choroso beijo perfumado, Deixa-nos ver, no peito omnipotente, O azul do céu a lua esmaecida, Como pérola em lago transparente... E, deste mundo a alma desprendida, Em vez de a viver antes sonhar Lagrimosa luz da minha vida!... Esta vida? Que serve este lidar? E tu, ó mar, que andas liquefeito Na infinita noite a soluçar... Para quê? De que serve o imperfeito? Não sei o fim de uma estrelinha a arder, Nem para quê palpita este meu peito!... E não se pode, às vezes, esquecer Lembrança alegre, feita de sol-posto, Nuvenzinha de dor e de prazer... E sentimos um pálido desgosto, Se pensamos nos dias decorridos A ver a linha de sonhado rosto... De que servem os dias bem vividos E as noites d'amor... se as venturas São como sóis em trevas escondidos!... De que nos serve amar as Virgens Puras, De que nos serve a luz das alvoradas, De que serve chorar lágrimas duras, Se os desejos são lindas manadas De ovelhinhas que vão, na soledade, Buscar, em vão, as ervas orvalhadas? Pra que nos deste, Deus, a mocidade... Loucas aspirações, que servem só Pra nos deixar no peito uma saudade! A saudade! Essa velha e idosa avó Que reza, a chorar, pelos seus netos, As ilusões que já dormem no pó... De que nos serve amar sagrados tectos, De que nos serve o amor qu'inda nos resta, Se o trocamos, a rir, por dois afectos? Eu sei... eu sei que este viver não presta... E dele algumas vezes digo bem, Como quem ama aquilo que detesta! Encantou-me uma alma de cecém, E nela já meu coração inverna: Não há quem tudo olhe com desdém... Bendita sejas, Inconstância eterna! De furna a pratear em descampado, De campo a escurecer numa caverna!... * Já nisto Belo havia meditado, Quando os faróis das suas sobrancelhas Iluminaram verde descampado, Onde os doirados lábios das abelhas Lançam, a medo, uns beijos d'harmonia Nas delicadas pétalas vermelhas... E uma flor, que de paixões sofria, Ou se torna de medo prateada Ou de prazer se torna cor do dia... Mas de pudor a rosa afogueada Entre as folhas esconde docemente A pequenina face envergonhada. E outra flor, de palidez tremente, Queria que um olhar se humedecesse E lhe regasse o idílico ambiente... Com um beijo um lírio empalidece, Como se no seu cálice de nata Um lindíssimo dia amanhecesse! Nos arvoredos brancos da cascata, De flores ideais santos desejos Ali vão sucumbir em ais de prata... Das pétalas guardam doces beijos As abelhas que voam na floresta, Num deslumbrado frémito d'harpejos, Indo esconder o amor duma giesta Em redomas de mel e de frescor, Onde uma pastorinha dorme a sesta... E, olhando as abelhas numa flor, Belo sentiu, num aclarar sagrado, Rebentar no seu peito um novo amor... Quando do cerro o dia iluminado, Em d'oiro apoteose, vai subindo, Como um calvário um Deus aureolado, Já a abelha sábia, nos rosais zumbindo, Anda em busca do seu doce alimento, Que, em cálix d'oiro, vai a aurora abrindo... Chego a amaldiçoar esse tormento Que as flagela e mata: — a geada dura Que põe facas de mármore no vento! Pelas noites só feitas de negrura Nesses beijos de luz vão invernar, Quando o arroio de cólera sussurra... Escondem-se as abelhas, a chorar, Dos seus beijos doirados na paz mansa, Té quando o sol comece de raiar... Na ingenuidade branca de criança, Ali passam o inverno reunidas, Tendo uma luz somente e uma esperança. Belo medita: «As lágrimas vertidas Antes fossem lavar com o seu sal Em oiro as vossas almas esculpidas. Bem melhor que chorá-las pelo Mal; Porque assim só fazem lamaçais No pó duma alma à nossa desigual! Como eu vos amo, abelhas ideais! Vou mandar-vos meu choro em alimento, E em licor de dor meus frios ais... Em vós existe todo o sentimento, Todo o amor, toda a luz, toda a virtude, O quer que é que faz morrer o tempo! Amar como amais também eu pude... Também chorei nos braços duma cruz E tomei por um dia a noite rude... Se não vos amo, ó filhas de Jesus?! Sois vós que haveis de dar-me, em noite linda, Na frieza da morte, a última luz!...» Nesta meditação duma Alma infinda, O sonhador lembrou-se, com delírio, Doutra alma que na sua vive ainda! Duas almas tão unidas num martírio, Que uma na outra já se vão perdendo, Como uma abelha a desmaiar em lírio!... A sua alma era fogo em luz morrendo, Astro cego de luz e de loucura Que pelo céu, à sorte, vai correndo, Em busca desse Lírio de brancura Que um instante somente em toda a vida Lhe amaciou d'arminho a sorte dura... E sua alma, qual folha desprendida Do seu corpo — arbusto muito fino — Pelo vento do amor ia perdida, Naufragando nesse Éter cristalino Que embalsama o ar do nosso sonho, Que nos esconde o ideal divino!... * Lá vem o inverno búzio e tristonho De lamacenta capa a voar ao vento, Molhando a cara pra acordar dum sonho... E as abelhas, no seu esquecimento, Vêem-se pobres porque algum malvado Lhes foi roubar, de noite, o alimento! Nem a fome respeita o que é sagrado... O que despede um raio de tristeza Na face de Jesus crucificado... Té nas celas de mel chora a pobreza Um choro — que é um canto de sereias... Dorida voz de quem, à tarde, reza... Fazem-me recordar essas colmeias, Onde milhar's d'abelhas se reúnem, Uns pequeninos cérebros de ideias... Homens, que todo o fel em si resumem, Vão roubar as abelhas nos seus ninhos, Que d'ódio até o pedregulho fundem! Havendo almas brancas como os linhos, Almas há que vos roubam... Deus permita Que, após a morte, gritem nos caminhos! É que a alma que tomba na desdita De colmeias roubar... em indo a vida, A horas mortas, nos valados grita... Pelo povo esta lenda é bem sabida; E alguém disse que lenda não havia Sem verdade em seu fundo haver 'scondida... * Nasceu n'alma de Belo uma alegria Tão rude e excepcional, ao pensar nisto, Que nem urze a nascer de penedia... Quanto até ali seus olhos tinham visto Era banal e mau... Só com amor Podia olhar a palidez dum Cristo. E a sua alma, em sonhos d'esplendor, Descobriu uma fresca pastorinha, Que andara o dia em busca dum pastor... Belo «Antes minh'alma andasse, assim branquinha, Seus lindos sonhos a guardar nos montes Do que nos vales a chorar sozinha!... Antes minh'alma, à luz das claras fontes, Ali bebesse as lindas alvoradas, Que humedecem d'amor os horizontes...» E, ao frio triste das paixões geladas, Belo d'horror tremia e de desgosto, Como quem sobe as rochas escarpadas! O olhar, que da pastora enfeita o rosto, Contemplava o de Belo suspirado: Duas luzes saídas dum sol-posto... Fez-lhe lembrar um lírio desmaiado Que outrora vira em monte solitário, E lhe fugira, a rir, pró céu doirado! Branquejava-lhe um sonho imaginário, Como, ao longe, por entre as oliveiras, A cal branca de humilde campanário! Belo «Antes minh'alma andasse nas ladeiras, Como um pobre arrimado ao seu bordão, A ouvir, pastora, tuas canções ligeiras!... Eu sei que tu não és uma ilusão; Que és verdadeira, como o sol que nasce!... Não costuma mentir o coração... Eu acredito nessa tua face... Do teu rosto na húmida frescura, Como as tenrinhas folhas duma alface... Há muito que sonhei tua alma pura: Uma sonhada noite mist'riosa Que o luar não deixa ser escura... Teu rosto eu vi, em noite tenebrosa... E, em negra visão, tu me sorriste Um sorriso da cor da murcha rosa... Não sei... não sei se um coração resiste Ao choque de poético sorriso, A desmaiar de dor em lábio triste! Na minha alma chove já granizo... E sinto-me doente ao ver finar A desmaiada estrela dum sorriso... E fico triste, como o desmaiar Do dia... se acaso nos achamos Em paisagem deserta, à beira-mar... E nós dois, a Tristeza e eu, andamos, Como dois pobrezinhos sem calor Por caminhos que nós nunca trilhamos. A tristeza é sinal de grande dor... Só com força palpita o coração, Quando movido a lágrimas d'amor!... De resto tudo é nulo, tudo é vão: Pó que o vento faz e o vento perde... Só a Tristeza não existe em vão!... Como doença mortal que alguém herde, Herdei esta alma pálida e chorosa Que o meu peito, em breve, fará verde... É que embebi minh'alma lacrimosa No licor da tua alma transparente, Que outro sabor lhe deu: fê-la extremosa... De dura que ela era e inconsciente Deu-lhe esta luz e suavidade santa Que aos penhascos dá o Oriente... E ver em mim outr'alma é o que me espanta... Julgo ter duas almas reunidas, E esse peso d'oiro me quebranta!... Como hei-de dar luz a duas vidas, Se o meu peito chama não produz: Dá só calor de brasas aquecidas... Como hei-de sustentar tão grande cruz, se a minha espinha dobra para o chão, Como quem só ali encontra luz... Talvez somente brilhe algum clarão Na terra opaca e fria como o norte, Como em lábio de pedra uma oração... Nela existe o segredo duma sorte, Como um fino brilhante em rocha dura... É lapidar a vida... e eis a morte!... A morte? O que és tu, sombra perjura, Que eu vejo ao lado quando volto o rosto, Sem que veja uma luz na vida escura... O que será, Pastora, este desgosto Cuja causa eu não sei, mas que magoa, E da aurora da vida faz sol-posto!... Qual nuvem que do sol a luz nos coa, Tornando-a mais pálida e mais triste, Como da tarde a luz numa lagoa, Assim em torno à minha alma existe O clarão dum mistério inextinguível, Que esta alma em o ver sempre persiste... Ê um licor de luz quase invisível Que o meu olhar absorve sem querer, Numa doce embriaguez imperceptível... A realidade assim não pode ver, Fugindo só prà esfera do Mistério, Onde pensa beijar astros a arder. Ali procura a estrela dum império Que lhe ilumine a vida ingrata e nua, Como a lua a cruz dum cemitério... Ali procura o norte — essa falua, Pra que o leve deste mar — o mundo, A um porto longe aonde ancora a lua! Do triste sonhador o olhar profundo Foi, pelo céu, em busca d'alvoradas Que nunca pôde achar cá neste mundo... E eram tantas as lágrimas choradas Que no seu peito magro já nasciam Algas d'amor das lágrimas salgadas... Como velhos que cem anos viviam Há-de viver a dor dentro em seu peito, Contando-lhe os prazeres que fugiam... Aborrecia tudo o que é imperfeito: O coração que, em seu peito doente, Era qual morto num funéreo leito!... E Belo, alma d'oiro reluzente, Chorava tanto como as madrugadas Com eternas saudades do Oriente... Elas sobem do céu, aureoladas, Pelo sopro de pálida bonança, Deixando as florestas orvalhadas, Como se a aurora fosse uma criança Que, ao passar da vida esse levante, Em lágrimas perdesse a esperança!... Belo andava, num sonhar constante, Por esses vales a escorrer luar, Em busca sempre, sem parar um instante, Daquilo que não viu o seu olhar... E que ele tanto amava... e cujo amor Por muitíssima vez o fez chorar... Chorar? Não sei que serve este frescor, Se as flores de mágoa que em nós crescem Nas lágrimas se toucam de verdor? Os brasidos das mágoas aquecem Os orvalhos do pranto, como escolhos Que ao calor de certa água derretem... A lágrima jamais queima os abrolhos... E para ela ser pura há-de morrer Dentro da alma sem chegar aos olhos... A alma é uma fonte ou estrela a arder: Ou seca ou molha então a nossa dor... Seca-a primeiro prà fazer nascer!... Como às montanhas faz velho pastor Queimando-as no inverno, pra no Estio Se acharem cobertas de verdor, Assim a alma dá calor e frio Com que mata ou cria um sentimento... É nascente que aumenta ou seca um rio... E que ela nos leve ao Firmamento, Em levada de lágrimas salgadas, A ver se achamos essas alvoradas Com que sonha o nosso Pensamento!... __________________________________ Belo (II parte) Meditações in Belo 1896 [Belo | À minha alma | Sempre | Terra Proibida | 1997 | ed: Assírio & Alvim] Teixeira de Pascoaes
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