1.
Ah! A saudade dessas milhas salgadas, sem corpo,
E a névoa e extensão que elas mesmas criavam!
O desejo de ser o lado de lá de tudo isso,
Muito mais que horizonte — e ali sempre pregado!
Ali, orla de mim, termo de mim comigo!
Ali, eu osso, e areia o resto, e longe o resto!
Ali, eu sangue, posição e olhos compridos!
O mar formado ali, no sal dos meus desejos,
Rasgado pelas naus que eu fui, de mim fugindo,
Pesando nos fundões que deixei, lá submerso:
Eu, dejecto de estrela e desperdício de anjo,
Coisa sem fim no pequenino,
A esta hora talvez já mar, só de saudade;
Talvez feito um bocado para onda,
Só de o meu peito se lembrar de outrora,
Um outrora que é água nos meus olhos —
Não que nenhuma lágrima se prenda
A estes meus verdadeiros cílios secos,
Linhas da minha vida em meu olhar:
Mas porque ele mesmo, o olhar, é um pouco de água
Transtornada de humano sentimento,
Prolongada no ver pelo pensar.
Esta saudade é uma maré que eu sou;
Esta tristeza é já meu mar rolando,
Meu vento levantando-se na voz,
Minha contiguidade separando
Seus bocados inermes e sem área,
Seu percorrido igual em todos os navios,
Seu movente e parado eirado frio
Que se aquece nos reinos de coral
E quer quebrar-se em praias — mas que é delas,
Se não são minhas secas desistências
No inútil desenho de alguns passos?
De onde em onde uma luz — mas nem parece,
De apagada e perdida nos socorros,
De intermitente ao vento que já sou...
Assim corto, descalço, a extensão do meu ser.
Vou eu, sou eu o que regressa enxuto
Apesar destas águas cá choradas.
Ó líquida distância em que eu fundava
Tanta esperança viva,
Hoje sem fundo nem âncora nenhuma,
Só lembrança direita e atravessada
Por mim, sem pés nem tábuas!
Minha alma cinge túnica de grave,
Calça tristeza como a enxada terra,
Fecha-se já por dentro do meu rosto,
Desce na minha carne e aos ossos fala,
Entende-se com eles de vida e morte,
Em sua árvore branca amadurece
E, bebendo de mim o que perdura,
De seu rijo tutano come e esquece.
Minha alma está vestida de chorar.
Já seus dedos procuram na cabeça
A coroa brava que os caminhos deram.
Ah! mas é tudo abstracto na cabeça!
Nem o espinho, se há dor, faz lá seu furo,
E, se ainda assim existe, é então o sangue
Que veste a alma virgem de rubor...
Meu ser, quem te descora
E só tinge no mar a noite e a barca fria?
Navega e lava a tua forma ao longe,
Aprofunda a vontade de chorar
No vestido de lágrimas que levas,
Esconde os teus motivos mais secretos
No pique frio de uma estrela olhada,
Aviva o teu perfil no gume exacto
Do vento da manhã:
Mas que esse seja
O irrespirado, o que espreitava o dia
Já guardado nas âmbulas do mar
E ainda fresco nas ilhas estendidas
Lá no simples adeus em que as deixaste,
Ainda cheio do íntimo suspiro
Com que em terra os meninos acordavam,
Mas já molhado de águas sem começo,
Puro outra vez de tanto procurar-te,
Cego da espuma que preenche a noite,
Curvo como o tecido do Oceano,
E assim, de seu vagar só carregado,
No bafo sucessivo espere a hora
Em que teu vulto altere os horizontes
Para ele crescer e se estrear no humano.
Minha respiração, noiva do vento,
Tu, que trazes ao fundo do meu sangue
Toda a livre largura conhecida,
Diz-me de que países encobertos
Meu coração é só rochedo baço
E que vara saudosa pra lá tange
Estes tristes rebanhos do que eu faço.
2.
Quando a manhã já cinge a estrela Vésper
Anulando a distância a noite e dia
Ficamos siderados de alegria.
Tão puros somos no esplendor rosado,
Que o antigo humano mundo carregado
Já se aparta da nossa companhia.
O instante é uma centelha.
O dia sobe; a flor carrega a abelha
Do necessário mel que lhe cabia.
Quantos séculos conto a este momento
Que me faz leve e límpido no vento?
Que idade tem a Terra na poesia?
______________________________________
Áspera vida
in [Revista de Portugal, n. 6]
1939
[Odes marítimas / Odes maritimes |
1997 | ed: Assírio & Alvim]
Vitorino Nemésio
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