A instabilidade da Fortuna,  
os enganos suaves de Amor cego,  
— suaves, se duraram longamente —,  
direi, por dar à vida algum sossego;  
que pois a grave pena me importuna,  
importune meu canto a toda a gente.  
E se o passado bem co mal presente  
me endurece a voz no peito frio,  
o grande desvario  
dará de minha pena sinal certo;  
que um erro, em tantos erros, é concerto.  
E pois nesta verdade me confio  
— se verdade se achar no mal que digo —,  
saiba o mundo de Amor o desconcerto,  
que já co a Razão se fez amigo,  
só por não deixar culpa sem castigo.  
  
Já Amor fez leis, sem ter comigo algua;  
já se tornou, de cego, arrazoado,  
só por usar comigo sem-razões.  
E se em algua cousa o tenho errado,  
com siso grande dor não vi nenhua,  
nem ele deu sem erros afeições.  
Mas, por usar de suas isenções,  
buscou fingidas causas por matar-me;  
que, para derrubar-me  
no abismo infernal de meu tormento,  
não foi soberbo nunca o pensamento,  
nem pretende mais alto alevantar-me  
daquilo que ele quis; e se ele ordena  
que eu pague seu ousado atrevimento,  
saiba que o mesmo Amor, que me condena,  
me fez cair na culpa e mais na pena.  
  
Os olhos que eu adoro, aquele dia  
que desceram ao baixo pensamento,  
n'alma os aposentei suavemente;  
e pretendendo mais, como avarento,  
o coração lhe dei por iguaria,  
que a meu mandado tinha obediente.  
Porém, como ante si lhe foi presente  
que entenderam o fim de meu desejo,  
ou por outro despejo,  
que a língua descobriu por desvario,  
de sede morto estou posto num rio,  
onde de meu serviço o fruto vejo;  
mas logo se alça, se a colhê-lo venho,  
e foge-me a água, se beber porfio.  
Assi que em fome e sede me mantenho:  
não tem Tântalo a pena que eu sustenho.  
  
Despois que aquela em quem minh'alma vive  
quis alcançar o baixo atrevimento,  
debaixo deste engano a alcancei:  
a nuvem do contino pensamento  
ma afigurou nos braços, e assi a tive,  
sonhando o que acordado desejei.  
Porque a meu desejo me gabei  
de alcançar um bem de tanto preço,  
além do que padeço,  
atado em ua roda estou penando,  
que em mil mudanças me anda rodeando,  
onde, se a algum bem subo, logo deço.  
E assi ganho e perco a confiança;  
e assi de mi fugindo, trás mi ando;  
e assi me tem atado ua vingança,  
como Ixião, tão firme na mudança.  
  
Quando a vista suave e inumana  
meu humano desejo, de atrevido,  
cometeu, sem saber o que fazia,  
que de sua beleza foi nacido,  
o cego Moço que, co a seta insana,  
o pecado vingou desta ousadia,  
e afora este mal que eu merecia,  
me deu outra maneira de tormento:  
que nunca o pensamento,  
que sempre voa dua a outra parte,  
destas entranhas tristes não se farte,  
imaginando sobre o famulento,  
quanto mais come, mais está crecendo,  
por que de atormentar-me não se aparte.  
Assi que para a pena estou vivendo,  
sou outro novo Tício, e não me entendo.  
  
De vontades alheias, que roubava,  
e que enganosamente recolhia  
em meu fingido peito, me mantinha.  
De maneira o engano lhe fingia  
que, depois que a meu mando as sojugava,  
com amor as matava, que eu não tinha.  
Porém, logo o castigo que convinha  
o vingativo Amor me fez sentir,  
fazendo-me subir  
ao monte da aspereza que em vós vejo,  
co pesado penedo do desejo,  
que do cume do bem me vai cair.  
Torno a subi-lo ao desejado assento;  
torna a cair-me; embalde, enfim, pelejo.  
Não te espantes, Sísifo, deste alento,  
que às costas o subi do sofrimento.  
  
Dest'arte o sumo bem se me oferece  
ao faminto desejo, por que sinta  
a perda de perdê-lo mais penosa.  
Como o avaro a quem o sonho pinta  
achar tesouro grande, onde enriquece  
e farta sua sede cobiçosa  
e, acordando, com fúria pressurosa  
vai cavar o lugar onde sonhava,  
mas tudo o que buscava  
lhe converte em carvão a desventura;  
ali sua cobiça mais se apura,  
por lhe faltar aquilo que esperava;  
dest'arte Amor me faz perder o siso.  
Porque aqueles, que estão na noite escura,  
nunca sentirão tanto o triste abiso,  
se ignorarem o bem do Paraíso.  
  
Canção, nõ mais, que já não sei que digo;  
mas por que a dor me seja menos forte,  
diga o pregão a causa desta morte.  
  
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A instabilidade da Fortuna
(Canção II)
in Rimas
1595
Luís Vaz de Camões

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