Cortando vão as naus a larga via
Do mar ingente para a pátria amada,
Desejando prover-se de água fria
Para a grande viagem prolongada,
Quando, juntas, com súbita alegria,
Houveram vista da Ilha namorada,
Rompendo pelo céu a mãe formosa
De Menónio, suave e deleitosa.

De longe a Ilha viram, fresca e bela,
Que Vénus pelas ondas lha levava
(Bem como o vento leva branca vela)
Para onde a forte armada se enxergava;
Que, por que não passassem, sem que nela
Tomassem porto, como desejava,
Para onde as naus navegam a movia
A Acidália, que tudo, enfim, podia.

Mas firme a fez e imóbil, como viu
Que era dos Nautas vista e demandada,
Qual ficou Delos, tanto que pariu
Latona Febo e a Deusa à caça usada.
Para lá logo a proa o mar abriu,
Onde a costa fazia uma enseada
Curva e quieta, cuja branca areia
Pintou de ruivas conchas Citereia.

Três formosos outeiros se mostravam,
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na formosa Ilha, alegre e deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa fugitiva.

Num vale ameno, que os outeiros fende,
Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde uma mesa fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como que pronto está para afeitar-se,
Vendo-se no cristal resplandecente,
Que em si o está pintando propriamente.

Mil árvores estão ao céu subindo,
Com pomos odoríferos e belos;
A laranjeira tem no fruto lindo
A cor que tinha Dafne nos cabelos.
Encosta-se no chão, que está caindo,
A cidreira cos pesos amarelos;
Os formosos limões ali cheirando
Estão virgíneas tetas imitando. (...)

Para julgar, difícil cousa fora,
No céu vendo e na terra as mesmas cores,
Se dava às flores cor a bela Aurora,
Ou se lha dão a ela as belas flores.
Pintando estava ali Zéfiro e Flora
As violas da cor dos amadores,
O lírio roxo, a fresca rosa bela,
Qual reluze nas faces da donzela;

A cândida cecém, das matutinas
Lágrimas rociada, e a manjerona,
Vêm-se as letras nas flores Hiacintinas,
Tão queridas do filho de Latona;
Bem se enxerga nos pomos e boninas
Que competia Clóris com Pomona.
Pois, se as aves no ar cantando voam,
Alegres animais o chão povoam.

Ao longo da água o níveo cisne canta,
Responde-lhe do ramo Filomela;
Da sombra de seus cornos não se espanta
Acteon na água cristalina e bela;
Aqui a fugace lebre se levanta
Da espessa mata, ou tímida gazela;
Ali no bico traz ao caro ninho
O mantimento o leve passarinho.

Nesta frescura tal desembarcavam
Já das naus os segundos Argonautas,
Onde pela floresta se deixavam
Andar as belas Deusas, como incautas.
Algumas, doces cítaras tocavam,
Algumas, harpas e sonoras frautas;
Outras, cos arcos de ouro, se fingiam
Seguir os animais que não seguiam.

Assim lho aconselhara a mestra experta:
Que andassem pelos campos espalhadas;
Que, vista dos barões a presa incerta,
Se fizessem primeiro desejadas.
Algumas, que na forma descoberta
Do belo corpo estavam confiadas,
Posta a artificiosa formosura,
Nuas lavar se deixam na água pura.

Mas os fortes mancebos, que na praia
Punham os pés, de terra cobiçosos
(Que não há nenhum deles que não saia),
De acharem caça agreste desejosos,
Não cuidam que, sem laço ou redes, caia
Caça naqueles montes deleitosos,
Tão suave, doméstica e benina,
Qual ferida lha tinha já Ericina.

Alguns, que em espingardas e nas bestas,
Para ferir os cervos, se fiavam,
Pelos sombrios matos e florestas
Determinadamente se lançavam;
Outros, nas sombras, que de as altas sestas
Defendem a verdura, passeavam
Ao longo da água, que, suave e queda,
Por alvas pedras corre à praia leda.

Começam de enxergar subitamente,
Por entre verdes ramos, várias cores,
Cores de quem a vista julga e sente
Que não eram das rosas ou das flores,
Mas da lã fina e seda diferente,
Que mais incita a força dos amores,
De que se vestem as humanas rosas,
Fazendo-se por arte mais formosas.

Dá Veloso, espantado, um grande grito:
Senhores, caça estranha, disse, é esta!
Se inda dura o Gentio antigo rito,
A Deusas é sagrada esta floresta.
Mais descobrimos do que humano esprito
Desejou nunca, e bem se manifesta
Que são grandes as cousas e excelentes
Que o mundo encobre aos homens imprudentes.

Sigamos estas Deusas e vejamos
Se fantásticas são, se verdadeiras.
Isto dito, veloces mais que gamos,
Se lançam a correr pelas ribeiras.
Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,
Mas, mais industriosas que ligeiras,
Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,
Se deixam ir dos galgos alcançando.

De uma os cabelos de ouro o vento leva,
Correndo, e da outra as fraldas delicadas;
Acende-se o desejo, que se ceva
Nas alvas carnes, súbito mostradas.
Uma de indústria cai, e já releva,
Com mostras mais macias que indignadas,
Que sobre ela, empecendo, também caia
Quem a seguiu pela arenosa praia.

Outros, por outra parte, vão topar
Com as Deusas despidas, que se lavam;
Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam.
Umas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às mãos cobiçosas vão negando.

Outra, como acudindo mais depressa
À vergonha da Deusa caçadora,
Esconde o corpo na água; outra se apressa
Por tomar os vestidos que tem fora.
Tal dos mancebos há que se arremessa,
Vestido assim e calçado (que, coa mora
De se despir, há medo que inda tarde)
A matar na água o fogo que nele arde.

Qual cão de caçador, sagaz e ardido,
Usado a tomar na água a ave ferida,
Vendo [ao] rosto o férreo cano erguido
Para a garcenha ou pata conhecida,
Antes que soe o estouro, mal sofrido
Salta na água e da presa não duvida,
Nadando vai e latindo: assim o mancebo
Remete à que não era irmã de Febo.

Leonardo, soldado bem disposto,
Manhoso, cavaleiro e namorado,
A quem Amor não dera um só desgosto
Mas sempre fora dele maltratado,
E tinha já por firme pressuposto
Ser com amores mal afortunado,
Porém não que perdesse a esperança
De inda poder seu Fado ter mudança,

Quis aqui sua ventura que corria
Após Efire, exemplo de beleza,
Que mais caro que as outras dar queria
O que deu para dar-se a natureza.
Já cansado, correndo, lhe dizia:
Ó formosura indigna de aspereza,
Pois desta vida te concedo a palma,
Espera um corpo de quem levas a alma!

Todas de correr cansam, Ninfa pura,
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu só de mim só foges na espessura?
Quem te disse que eu era o que te sigo?
Se to tem dito já aquela ventura
Que em toda a parte sempre anda comigo,
Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,
Mil vezes cada hora me mentia.

Não canses, que me cansas; e se queres
Fugir-me, por que não possa tocar-te,
Minha ventura é tal que, inda que esperes,
Ela fará que não possa alcançar-te.
Espera; quero ver, se tu quiseres,
Que subtil modo busca de escapar-te;
E notarás, no fim deste sucesso,
«Tra la spica e la man qual muro he messo».

Oh, não me fujas! Assim nunca o breve
Tempo fuja de tua formosura;
Que, só com refrear o passo leve,
Vencerás da Fortuna a força dura.
Que Imperador, que exército, se atreve
A quebrantar a fúria da ventura
Que, em quanto desejei, me vai seguindo,
O que tu só farás não me fugindo?

Pões-te da parte da desdita minha?
Fraqueza é dar ajuda ao mais potente.
Levas-me um coração que livre tinha?
Solta-mo e correrás mais levemente.
Não te carrega essa alma tão mesquinha
Que nesses fios de ouro reluzente
Atada levas? Ou, depois de presa,
Lhe mudaste a ventura e menos pesa?

Nesta esperança só te vou seguindo:
Que ou tu não sofrerás o peso dela,
Ou, na virtude de teu gesto lindo,
Lhe mudarás a triste e dura estrela.
E se se lhe mudar, não vás fugindo,
Que Amor te ferirá, gentil donzela,
E tu me esperarás, se Amor te fere;
E se me esperas, não há mais que espere.

Já não fugia a bela ninfa tanto,
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas que dizia.
Volvendo o rosto, já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.

Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é exprimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo.

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A ilha dos amores
in Os Lusíadas (IX, 51-56, 6183)
1572
[Versos e alguma prosa de Luís de Camões
- selecção de Eugénio de Andrade | 1996 |
ed: Campo das Letras]
Luís Vaz de Camões (1524-80)

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