No cume do Parnaso, duro monte
De silvestre arvoredo rodeado,
Nasce uma cristalina e clara fonte,
Donde um manso ribeiro derivado,
Por cima de alvas pedras, mansamente
Vai correndo, suave e sossegado.
O murmurar das ondas excelente
Os pássaros excita que, cantando
Fazem o monte verde mais contente.
Tão claras vão as águas caminhando
Que, no fundo, as pedrinhas delicadas
Se pode, uma e uma, estar contando.
Não se verão ao redor pisadas
De fera ou de pastor que ali chegasse,
Porque do espesso monte são vedadas.
Erva se não verá que ali criasse
O monte ameno, triste ou venenosa,
Senão que lá no centro as igualasse
O roxo lírio a par da branca rosa,
A cecém branca e a flor que dos amantes
A cor tem magoada e saudosa;
Ali se vêem os mirtos circunstantes
Que a cristalina Vénus encobriram
Da companhia dos Faunos petulantes.
Hortelã, manjerona, ali respiram,
Onde nem frio Inverno ou quente Estio,
As murcharam jamais, ou secas viram.
Destarte vai seguindo o curso o rio,
O monte inabitado e o deserto,
Sempre com verdes árvores sombrio.
Aqui uma linda Ninfa por acerto
Perdida da fragueira companhia,
A quem este alto monte era encoberto,
Cansada já da caça vindo um dia,
Quis descansar à sombra da floresta,
E tirar nas mãos alvas da água fria.
E vendo a novidade manifesta
Do sítio, e como as árvores co vento
As calmas defendiam da alta sesta;
Das aves o lascivo movimento,
Que, em seus módulos versos ocupadas,
As asas dão ao doce pensamento;
Tendo notado tudo, já passadas
As horas da grã sesta se tornou
A buscar as irmãs, no centro, amadas.
Depois que largamente lhes contou
Do não visto lugar que perto estava
Que tanto por extremo a namorou,
Que ao outro dia fossem, lhes rogava,
A lavar-se naquela fonte amena,
Que tão formosas águas destilava.
já tinha dado um giro a luz serena
Do grão pastor de Admeto, e já nascia
Aos ditosos amantes nova pena,
Quando as formosas ninfas à porfia
Para o lugar do monte caminhavam,
Rompendo a manhã roxa, alegre e fria.
De uma os cabelos louros se espalhavam
Pelo formoso colo, sem concerto,
Com dous mil nós suaves se enlaçavam;
Outra, levando o colo descoberto,
Por mais despejo em tranças os atara,
Havendo por pesado o desconcerto.
Dinamene e Efire, a quem topara
Nuas Febo num rio, e encobriram
Seus delicados corpos na água clara;
Sirinx e Nise, que das mãos fugiram
Do Tegeu Pã, Amanta e Elisa,
Destras nos arcos mais que quantas tiram;
A linda Daliana, com Belisa,
Ambas vindas do Tejo, que como elas
Nenhuma tão formosa as ervas pisa;
Todas estas angélicas donzelas
Pelo viçoso monte alegres iam,
Quais no céu largo as nítidas estrelas.
Mas dous silvestres deuses, que traziam
O pensamento em duas ocupado,
A quem de longe mais que a si queriam,
Não lhes ficava monte, vale ou prado,
Nem árvore, por onde quer que andavam,
Que não soubesse deles seu cuidado.
Quantas vezes os rios que passavam
Detiveram seu curso, ouvindo os danos
Que até os duros monte magoavam.
Quantas vezes amor de tantos anos
Abrandara qualquer vontade isenta,
Se, em Ninfas, corações houvesse humanos!
Mas quem de seu cuidado se contenta,
Ofereça de longe a paciência,
Que Amor de alegres mágoas se sustenta.
Que o moço Idálio quis nesta ciência
Que se compadecessem dois contrários,
Diga-o quem tiver dele experiência.
Indo os deuses, enfim, por montes vários,
Exercitando os olhos saudosos,
Ao cristalino rio tributários,
Toparam dos pés alvos e mimosos
As pisadas na terra conhecidas,
As quais foram seguindo, pressurosos.
Mas encontrando as Ninfas que, despidas,
Na clara fonte estavam, não cuidando
Que de alguém fossem vistas ou sentidas,
Deixaram-se estar quedos, contemplando
As feições nunca vistas, de maneira
Que vissem sem ser vistos, espreitando.
Porém a espessa mata, mensageira
Da futura cilada, co rugido
Dos raminhos de uma áspera aveleira,
Mostrando a um dos deuses escondido,
Todas tamanha grita alevantaram
Como se fosse o monte destruído.
E logo assim despidas se lançaram
Pela espessura, tão ligeiramente
Que mais então que os ventos avoaram.
Qual o bando das pombas quando sente
A formosa águia, cuja vista pura
Não obedece ao sol resplandecente,
Empresta-lhe o temor da morte dura
Nas asas nova força, e, não parando,
Cortam o ar e rompem a espessura;
Destarte vão as Ninfas que, deixando
De seu despojo os ramos carregados,
Nuas por entre as silvas vão voando.
Mas os amantes, já desesperados,
Que, para as alcançar, enfim se viam
Nada dos pés caprinos ajudados,
Com amorosos brados as seguiam.
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Écloga dos faunos (fragmento)
in Écloga, Elegias, Sextina
n.d.
[Versos e alguma prosa de Luís de
Camões - selecção de Eugénio de
Andrade | 1996 |
ed. Campo das Letras]
Luís Vaz de Camões (1524-80)
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