Pode um desejo imenso
Arder no peito tanto
Que à branda e à viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nódoas do terreno manto,
E purifique em tanta alteza o esprito
Com olhos imortais
Que faz que leia mais do que vê escrito.

Que a flama que se acende
Alto tanto alumia
Que, se o nobre desejo ao bem se estende
Que nunca viu, a sente claro dia;
E lá vê do que busca o natural,
A graça, a viva cor,
Noutra espécie melhor que a corporal.

Pois vós, ó claro exemplo
De viva formosura,
Que de tão longe cá noto e contemplo
Na alma, que este desejo sobe e apura;
Não creiais que não vejo aquela imagem
Que as gentes nunca vêem,
Se de humanos não têm muita vantagem.

Que, se os olhos ausentes
Não vêem a compassada
Proporção, que das cores excelentes
De pureza e vergonha é variada;
Da qual a Poesia, que cantou
Até qui só pinturas,
Com mortais formosuras igualou;

Se não vêem os cabelos
Que o vulgo chama de ouro,
E se não vêem os claros olhos belos,
De quem cantam que são do Sol tesouro;
E se não vêem do rosto as excelências,
A quem dirão que deve
Rosa, cristal e neve as aparências;

Vêem logo a graça pura
A luz alta e severa
Que é raio da divina formosura
Que na alma imprime e fora reverbera,
Assim como cristal do Sol ferido,
Que por fora derrama
A recebida flama, esclarecido.

E vêem a gravidade
Com a viva alegria
Que misturada tem, de qualidade
Que uma da outra nunca se desvia;
Nem deixa uma de ser arreceada
Por leda e por suave,
Nem outra, por ser grave, muito amada.

E vêem do honesto siso
Os altos resplandores,
Temperados co doce e ledo riso,
A cujo abrir abrem no campo as flores;
As palavras discretas e suaves,
Das quais o movimento
Fará deter o vento e as altas aves;

Dos olhos o virar,
Que torna tudo raso,
Do qual não sabe o engenho divisar
Se foi por artifício, ou feito acaso;
Da presença os meneios e a postura,
O andar e o mover-se,
Donde pode aprender-se a formosura.

Aquele não sei quê,
Que espira não sei como,
Que, invisível saindo, a vista o vê,
Mas para o compreender não acha tomo;
O qual toda a toscana poesia,
Que mais Febo restaura,
Em Beatriz nem em Laura nunca via;

Em vós a nossa idade,
Senhora, o pode ver,
Se engenho e ciência e habilidade,
Igual à formosura vossa der,
Como eu vi no meu longo apartamento,
Qual em ausência a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento!

Pois se o desejo afina
Uma alma acesa tanto
Que por vós use as partes de divina,
Por vós levantarei não visto canto,
Que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante;
Que o nosso claro Tejo
Envolto um pouco o vejo e dissonante.

O campo não o esmaltam
Flores, mas só abrolhos
O fazem feio; e cuido que lhe faltam
Ouvidos para mim, para vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
Que o sol, que em vós está,
Na escuridão dará mais claro lume.
_______________________________________
Ode
in Ode, Oitavas, Canções
n.d.
[Versos e alguma prosa de Luís de
Camões - selecção de Eugénio de
Andrade | 1996 |
ed. Campo das Letras]
Luís Vaz de Camões (1524-80)

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