Vinde cá, meu tão certo secretário
Dos queixumes que sempre ando fazendo,
Papel, com quem a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
Me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
Acenda-se com gritos um tormento
Que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
A Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
A quem já muitas vezes o contei,
Tanto debalde como o conto agora;
Mas, já que para errores fui nascido,
Vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
Não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
Falar e errar sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!
Já me desenganei que de queixar-me
Não se alcança remédio; mas quem pena,
Forçado lhe é gritar, se a dor é grande.
Gritarei; mas é débil e pequena
A voz para poder desabafar-me,
Por que nem com gritar a dor se abrande.
Quem me dará sequer que fora mande
Lágrimas e suspiros infinitos
Iguais ao mal que dentro na alma mora?
Mas quem pode alguma hora
Medir o mal com lágrimas ou gritos?
Enfim, direi aquilo que me ensinam
A ira, a mágoa, e delas a lembrança,
Que é outra dor por si, mais dura e firme.
Chegai, desesperados, para ouvir-me,
E fujam os que vivem de esperança
Ou aqueles que nela se imaginam,
Porque Amor e Fortuna determinam
De lhe darem poder para entenderem,
À medida dos males que tiverem.
(Quando vim da materna sepultura
De novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelices obrigado;
Com ter livre alvedrio, mo não deram,
Que eu conheci mil vezes na ventura
O melhor, e o pior segui, forçado.
E, para que o tormento conformado
Me dessem com a idade, quando abrisse
Inda menino, os olhos, brandamente,
Mandam que, diligente,
Um Menino sem olhos me ferisse.
As lágrimas da infância já manavam
Com uma saudade namorada;
O som dos gritos, que no berço dava,
Já como de suspiros me soava.
Coa idade o Fado estava concertado;
Porque quando, por acaso, me embalavam,
Se versos de amor tristes me cantavam,
Logo me adormecia a natureza,
Que tão conforme estava coa tristezal.
Foi minha ama uma fera, que o Destino
Não quis que mulher fosse a que tivesse
Tal nome para mim; nem a haveria.
Assim criado fui, porque bebesse
O veneno amoroso, de menino,
Que na maior idade beberia,
E, por costume, não me mataria.
Logo então vi a imagem e semelhança
Daquela humana fera tão formosa,
Suave e venenosa,
Que me criou aos peitos da esperança;
De quem eu vi depois o original,
Que de todos os grandes desatinos
Faz a culpa soberba e soberana.
Parece-me que tinha forma humana,
Mas cintilava espíritos divinos.
Um meneio e presença tinha tal
Que se vangloriava todo o mal
Na vista dela; a sombra, coa viveza,
Excedia o poder da Natureza.
Que género tão novo de tormento
Teve Amor, que não fosse, não somente
Provado em mim, mas todo executado?
Implacáveis durezas que o fervente
Desejo, que dá força ao pensamento,
Tinham de seu propósito abalado,
E de se ver corrido e injuriado;
Aqui, sombras fantásticas, trazidas
De algumas temerárias esperanças;
As bem-aventuranças
Nelas também pintadas e fingidas;
Mas a dor do desprezo recebido,
Que a fantasia me desatinava,
Estes enganos punha em desconcerto;
Aqui, o adivinhar e o ter por certo
Que era verdade quanto adivinhava,
E logo o desdizer-se, de corrido;
Dar às cousas que via outro sentido,
E para tudo, enfim, buscar razões,
Mas eram muitas mais as sem-razões.
[Não sei como sabia estar roubando,
Cos raios, das entranhas, que fugiam
Por ela, pelos olhos subtilmente!
Pouco a pouco invencíveis me saíam,
Bem como do véu húmido exalando
Está o subtil humor o Sol ardente.
Enfim, o gesto puro e transparente,
Para quem fica baixo e sem valia
Este nome de belo e de formoso,
O doce e piedoso
Mover de olhos, que as almas suspendia.
Foram as ervas mágicas, que o Céu
Me fez beber; as quais, por longos anos,
Noutro ser me tiveram transformado,
E tão contente de me ver trocado
Que as mágoas enganava cos enganos;
E diante dos olhos punha o véu
Que me encobrisse o mal, que assim cresceu,
Como quem com afagos se criava
Daquele para quem crescido estava]
Pois quem pode pintar a vida ausente,
Com um descontentar-me quanto via,
E aquele estar tão longe donde estava;
O falar, sem saber o que dizia;
Andar sem ver por onde, e juntamente
Suspirar sem saber que suspirava?
Pois quando aquele mal me atormentava
E aquela dor que das tartáreas águas
Saiu ao mundo, e mais que todas dói,
Que tantas vezes sói
Duras iras tornar em brandas mágoas;
Agora, co furor da mágoa irado,
Querer e não querer deixar de amar,
E mudar noutra parte por vingança
O desejo, privado de esperança,
Que tão mal se podia já mudar;
Agora, a saudade do passado
Tormento puro, doce e magoado,
Fazia converter estes furores
Em magoadas lágrimas de amores.
Que desculpas comigo que buscava
Quando o suave Amor me não sofria
Culpa na cousa amada, e tão amada!
Enfim, eram remédios que fingia
O medo do tormento, que ensinava
A vida a sustentar-se, de enganada.
Nisto uma parte dela foi passada,
Na qual se tive algum contentamento
Breve, imperfeito, tímido, indecente,
Não foi senão semente
De longo e amaríssimo tormento.
Este curso contino de tristeza,
Estes passos tão vãmente espalhados
Me foram apagando o ardente gosto
Que tão de siso na alma tinha posto,
Daqueles pensamentos namorados
Em que eu criei a tenra natureza,
Que do longo costume da aspereza,
Contra quem força humana não resiste,
Se converteu no gosto de ser triste.
Destarte a vida noutra fui trocando;
Eu não, mas o Destino fero, irado,
Que eu inda assim por outra não trocara.
Fez-me deixar o pátrio ninho amado,
Passando o longo mar, que ameaçando
Tantas vezes me esteve a vida cara.
Agora, exprimentando a fúria rara
De Marte, que cos olhos quis que logo
Visse e tocasse o acerbo fruto seu
(E neste escudo meu
A pintura verão do infesto fogo);
Agora, peregrino vago e errante,
Vendo nações, linguagens e costumes,
Céus vários, qualidades diferentes,
Só por seguir com passos diligentes
A ti, Fortuna injusta, que consumes
As idades, levando-lhe diante
Uma esperança em vista de diamante,
Mas quando das mãos cai, se conhece
Que é frágil vidro aquilo que aparece.
A piedade humana me faltava,
A gente amiga já contrária via,
No primeiro perigo; e no segundo,
Terra em que pôr os pés me falecia,
Ar para respirar se me negava,
E faltavam-me, enfim, o tempo e o mundo.
Que segredo tão árduo e tão profundo:
Nascer para viver, e para a vida
Faltar-me quanto o mundo tem para ela!
E não poder perdê-la,
Estando tantas vezes já perdida!
Enfim, não houve transe de fortuna,
Nem perigos, nem casos duvidosos,
Injustiças daqueles, que o confuso
Regimento do mundo, antigo abuso,
Faz sobre os outros homens poderosos,
Que eu não passasse, atado à grã coluna
Do sofrimento meu, que a importuna
Perseguição de males em pedaços
Mil vezes fez, à força de seus braços.
Não conto tanto males como aquele
Que, depois da tormenta procelosa,
Os casos dela conta em porto ledo;
Que inda agora a Fortuna flutuosa
A tamanhas misérias me compele,
Que de dar um só passo tenho medo.
Já de mal que me venha não me arredo,
Nem bem que me faleça já pretendo,
Que para mim não val astúcia humana;
De força soberana,
Da Providência, enfim, divina, pendo.
Isto que cuido e vejo, às vezes tomo
Para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana, quando lança
Os olhos no que corre, e não alcança
Senão memórias dos passados anos,
As águas que então bebo, e o pão que como,
Lágrimas tristes são, que eu nunca domo
Senão com fabricar na fantasia
Fantásticas pinturas de alegria.
Que se possível fosse que tornasse
O tempo para trás, como a memória,
Pelos vestígios da primeira idade,
E de novo tecendo a antiga história
De meus doces errores, me levasse
Pelas flores que vi da mocidade;
E a lembrança da longa saudade
Então fosse maior contentamento,
Vendo a conversação leda e suave,
Onde uma e outra chave
Esteve de meu novo pensamento,
Os campos, as passadas, os sinais,
A formosura, os olhos, a brandura,
A graça, a mansidão, a cortesia,
A sincera amizade, que desvia
Toda a baixa tenção, terrena, impura,
Como a qual outra alguma não vi mais...
Ah, vãs memórias, onde me levais
O fraco coração, que inda não posso
Domar este tão vão desejo vosso?
Não mais, Canção, não mais; que irei falando
Sem o sentir, mil anos. E se acaso
Te culparem de larga e de pesada,
Não pode ser (lhe dize) limitada
A água do mar em tão pequeno vaso.
Nem eu delicadezas vou cantando
Co gosto do louvor, mas explicando
Puras verdades já por mim passadas.
Oxalá foram fábulas sonhadas!
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Canção (outra)
[Vinde cá, meu tão certo secretário]
in Ode, Oitavas, Canções
n.d.
[Versos e alguma prosa de Luís de Camões
- selecção de Eugénio de Andrade | 1996 |
ed. Campo das Letras]
Luís Vaz de Camões (1524-80)
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