A Ela, o momento mais santo da minha alma. Em toda a parte eu vejo a luz do meu mistério Que sempre me persegue nesta noite rude... Tanto me faz chorar a cruz dum cemitério Como essa louca aurora que me dá saúde! Em toda a parte eu vejo a luz que me alumia, A luz que me nasceu no tempo em que eu amava... Quis penetrar na noite a ver se inda encontrava A essência subtil donde nos nasce o dia... Quando acaso me vejo, em espírito, sozinho, Com outro que eu conheço e que eu só sei amar, Hei saudades de mim, doutro que fui — menino, Que um dia me disse adeus pra nunca mais voltar! Há muito que aprendi o amor que por ti tenho... Foi Deus que mo ensinou, a rocha, a urze e o céu doirado, E a rocha e a urze lançaram-me este lenho, Aos meus ombros, que só por ti tenho arrastado... Por ti que és o meu sangue. Sim. Embora a carne Duma para a outra possa haver grandes sinais, Qual luz que noutra luz a mesma luz encarne, Num abraço somente Deus as põe iguais! Fui procurar ao mundo a força deste amor... E apenas o toquei nasceram-me dois braços.. E, mal os ia a abrir, fiquei na cruz da Dor... E então é que nasceu a cruz dos teus abraços! E eu que já fui feliz, alegre e satisfeito, Que tive no meu lábio o canto duma aurora E que trouxe um ninho de luz dentro do peito, Quase me não conheço e sinto-me outro agora... Lembro-me do que fui se penso em ti na vida... O que é viçoso e loiro o velho lembra ainda... A ti comparo eu esta alma já perdida: Foi loira como tu, foi assim loira e linda! Se te amo é que tu és desta alma a fiel miragem... Vejo que volta o meu passado ao ver-te agora... E tu és uma estrela aonde chega a imagem De tudo o que, ao luar, eu meditei outrora... Se eu olhasse o que fui já não me conhecia... Apenas tu o que eu fui me vieste apontar... E, como se acaso a noite visse o dia, Se em mistério me visse, eu punha-me a chorar! E tu és para mim o que é para a avózinha As contas por onde ela aprendeu a rezar... Lembras-me a tarde triste em que minha madrinha, Pela primeira vez, me ensinou a orar... Se outras mulheres amo, Estrela da Manhã, O meu amor por ti apaga outros amores... É um amor de mãe, de avô, de avó, de flores, Dedico-te o amor que tenho a minha irmã. Não vou buscar em ti a beleza sem fim. Nunca vi teu olhar nem teu cabelo loiro, E, se eu faço de ti alguma estrela d'oiro, É que minh'alma louca quis sonhar-te assim! Eu nunca desejei beijar a tua face... E queria as tuas mãos com rugas pràs beijar... Bem sabes que este amor que em mim tão puro nasce É das almas que descem para alcançar o Ar! E tu és para mim o que de mim fugiu... Tu és o belo espelho onde eu me vou mirar Quando desejo ver o que de mim partiu, O meu retrato antigo que me faz chorar! E tu és para mim o que é pra um cemitério Esse velho luar que há muito o iluminou... E tu és para mim o que é para um mistério Essa alma que, sofrendo, um dia o desvendou... Não sei bem quem tu és e sabes quem eu sou... Tu és o meu mistério; eu sou a tua verdade: És qualquer coisa vaga que de mim voou, O quer que é que fugiu da minha mocidade! Alguma sombra, alguma treva, alguma luz! Talvez o Infinito, o Nada, o Céu, o Inferno... Qualquer coisa onde existe esse prazer da cruz, Qualquer vida d'instante, o quer que é de eterno!... Eu sei lá! Eu sei lá!... Sei só que tu existes, Assim tudo mo diz quando abro o meu olhar... Ou quando volvo a mim de pranto os olhos tristes Ou quando alegres já os lanço para o Ar!... E eu sei bem, eu sei bem que nesta noite escura, Neste mar, quando vi a hora derradeira Tu fugiste, a voar, para os lados da Altura E, em pouco, me trouxeste o ramo de oliveira... Eu sei que me ensinaste a eu saber chorar, Que fizeste de mim o meu pior amigo... E a minha solidão desejas-ma roubar Que, sempre que estou só, encontro-me contigo! Bendita sejas tu, ó alma que nasceste Pra arrancares da campa um morto como eu sou... E a túnica da morte que o meu corpo veste A terra era tão má que nunca ma rasgou... Só tu sopraste a luz à minha sepultura, Só tu purificaste os meus queridos vermes... A minha podridão tornaste-a muito pura E fizeste-me erguer as minhas mãos inermes! Vou guardar a minh'alma e a minha f'licidade No cofre do teu olhar onde eu me posso ver... Tu bem sabes que nesta louca mocidade Eu tenho muito medo de a poder perder... Amo-te como um ai que vai fora do peito, Como tudo o que faz, fugindo, entristecer... Tanto te sei amar neste mundo imperfeito Que, pra te ver, passava a vida sem te ver! Amo-te muito quando a tarde se incendeia E voltas pró poente o teu perfil magoado, Com este olhar que não vê nada o que o rodeia Na escuridão que faz a sombra do passado... Eu sempre penso em ti, Rainha do meu Poema, Quando atravesso triste uma noite sem fim E me aparece, em sonho, o grande diadema Que cerca de esplendor teu rosto de marfim. De ti vejo somente apenas o clarão... Pra te alcançar a forma é pequeno este olhar... Quem me falou de ti foi o meu coração Que eu só não te podia assim adivinhar! Tu foste para mim a mais sagrada virgem... E nunca mais pró mundo o meu olhar abaixo... Junto de ti, ao vê-lo, eu sinto uma vertigem, Como se duma estrela olhasse cá pra baixo! Se a vida fez a luz, se a luz fez o luar, Se foi Deus que criou o céu, o mar e a terra, Dentro em meu peito, que trabalha sem parar, Eu criei para ti todo o amor que ela encerra! Ó mulher, ó mulher, que eu hei-de eternizar! Deixa que só por ti eu sofra eternamente... Deixa meu peito em ais, meu cérebro demente, Mulher da minha vida, ai deixa-me chorar! E tu és para mim as lágrimas que eu choro... Quando te vejo eu rezo ou começo a chorar... E sinto-me cansado, estrela que eu adoro, De tanto pela luz andar a batalhar... Depois que te amei também por mim senti Este esquisito amor de não andar comigo... E vejo bem que toda a vida que vivi, Toda esta luta foi pra me encontrar contigo! Se Deus me fez nascer nesta contínua guerra E me fez para sempre andar atrás da Luz, Como esse Cristo que por nós desceu à terra, Também por ti, na vida hei-de subir à cruz! De ti quero somente a tua frágil vida. Não quero o teu amor; quero poder amar. Alivia-me tu a vida já perdida Com esta grande dor de te poder deixar! Deixar-te?! O que seria eu no mundo triste Sem ti! Um vagabundo aos encontrões da sorte, Um desgraçada, um pobre de pedir que existe Unicamente, só para encontrar a morte! Deixar-te?! Nunca! Que além desta há outra vida! Para além deste sol ainda outro sol existe... Para além duma areia outra areia perdida, Além duma alma triste há outra bem mais triste! Olha: quando eu chorava, a sós, pelas herdades E pequenito ia ver o sol romper; Quando eu rezava sempre ao toque das Trindades É que sabia já que havias de nascer! Eu fui o teu profeta. Anunciei-te a vida. O teu nome eu preguei bem antes de o ouvir. Eu tinha um ano só e esta alma entristecida Ouvia, dentro em si, como um sentido a abrir... Eu tinha um ano só... E, quando, a rir, brincava Com o meu loiro irmão que Deus já tem no céu, Se acaso pró Oriente os olhos levantava Previa, ao longe, um sol que havia de ser meu! E como és linda e loira ele assim foi também, Assim minh'alma foi à luz dessa criança... Então é que te vi, na doirada esperança Da bênção que me dava, à tarde, minha mãe... E depois eu parti. Deixei tudo sozinho... As aves e as flor's: tudo a chorar por mim... Deixei sempre molhada a terra do caminho Que ia trilhando, à toa, sem saber um fim. E, selvagem feroz minado pela fome, Tenho insultado Deus e tudo quanto existe... Tenho, na grande dor que sempre me consome, Gasto pra a alimentar a minha alma triste! Tenho estragado nesta vida muita aurora! A luz calco-a aos pés como uma coisa vã... As noites de luar eu deito-as todas fora; Do meu peito arranquei a estrela da manhã! Assim eu vagueei, no mundo, loucamente, Em lágrimas matando a luz do meu olhar, Até que me surgiste, um dia, finalmente, Meu Arco da Aliança, para me salvar! Apareces, no céu, pelas manhãs suaves... Quanta vez te julguei um sol que amanheceu... Contra os teus olhos lindos iam bater as aves, Pensando que pra além havia inda mais céu!... E nesta vida alegre, venturosa e bela, Onde alcancei o céu sem asas pra voar, Eu vivo só de olhar a luz daquela estrela E à luz dela também, na terra, hei-de sonhar... No meu túmulo agreste há-de tombar a neve... De mãos em cruz sobre o meu peito hei-de dormir, Quando o luar com o seu lençol, muito ao de leve, Pra que eu não tenha frio, me vier cobrir! E, daí a pouco tempo, quando a Primavera Reverdecer os campos, eu hei-de chegar À terra, numa flor que tenha a cor da hera, Pra que o Outono, outra vez, a venha desfolhar! Deixá-lo... Venha a morte — a redentora, a santa... Quem sabe se na campa eu hei-de ter saudade Do teu olhar azul que tanto nos encanta... Venha a morte falar-me à minha soledade, Que, quando despontar a luz do luar no céu, Eu queria ver-te ir sozinha e desgrenhada, Co'um lírio que ao calor dum peito emurcheceu E arremessá-lo assim, pla noite abandonado, Na campa humilde e só de quem por ti morreu!... ____________________________________ À minha alma 1898 in [Belo | À minha alma | Sempre | Terra Proibida | 1997 | ed: Assírio & Alvim] Teixeira de Pascoaes
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