Aos meus íntimos amigos
Mário Negrão Monterroso
e Alberto Barros Castro

Em penhascoso e solitário monte,
Assentado no chão, Belo espraiava
A luz do seu olhar pelo horizonte...

Junto a seus pés a água murmurava
Suavíssimo canto de brandura,
Que nos brancos arroios se espalhava.

Era este regato de frescura
Do tosco monte a única harmonia,
Qual estrela, sozinha, em noite escura...

Belo amava a grande melodia
Que acorda, a sorrir, quando a alvorada
Mergulha em luz a brusca penedia.

É que o choque da luz estonteada,
Contra o mundo, produz um som tão brando
Que só o ouve a alma imaculada...

Voavam para o céu, em doce bando,
Tristes suspiros do seu peito amante,
Que iam de longe, a Belo, inda acenando.

Sorria e entristecia num instante,
Como se lhe tocasse, ao mesmo tempo,
O crepúsc'lo da tarde e do levante.

Quantas vezes dizia: — Amo o tormento
Onde a minh'alma pelo bem anseia,
Num palpitar enfraquecido e lento...

Gosto de ver quando a luz' scasseia...
Se acaso eu amo a vastidão do mar,
E quando olho outro mar d'areia...

Tenho na minha vida de trilhar
Sendas d'espinhos que ninguém calcava:
Qu'importa a noite se hei-de ter luar?!...

Belo chorava muita vez... chorava...
E, ao molhar em pranto a sua mão,
Fogo violento o peito lhe escaldava!

Tinha por companheiro um velho cão
Que jamais quis seu dono abandonar,
Embora lhe faltasse o magro pão.

Belo odiava o mundo com pesar...
E, no seu lábio, um riso d'alegria
Lembrava, à tarde, a luz crepuscular.

Seu confidente eterno, o cão gemia
Se visse o amo acabrunhado e triste,
Como pálida flor, ao cair do dia...

Sagrado o companheiro que persiste
Em seguir seu amigo na desdita,
Como sorriso que a uma dor resiste...

Belo olhava a abóbada infinita,
Co'o desespero, a ânsia, a agonia,
De triste náufrago que a terra fita!

Julgava-se infeliz... E, dia a dia,
O brilho que seus olhos esmaltava,
Qual fumo ao vento, para o céu fugia...

Com o seu canto azul apascentava
Um rebanho de sonhos vaporosos
Que o seu meigo olhar acalentava.

Que lindos cantos! Seus lábios sequiosos
Já não tinham o viço do medronho...
Sua cor fugia em tons harmoniosos...

Desde o tempo da vida que é risonho,
Percorre a solidão e os verdes prados,
Como um pastor d'estrelas e de sonho.

Tinha a idade dos jovens namorados,
Que adornam dos seus lábios a frescura
Com pérolas dos lírios orvalhados.

Sua loira cabeleira lisa e pura,
Em niágaras cai de sol doirado,
Nos seus ombros, qual luz em sombra escura.

Usa túnica já de pano usado...
E ajuda-o a saltar esses valados
O vigoroso pau do seu cajado.

Com a face e os olhos marejados
De doces lágrimas que ao sol do amor
Parecem astros de brilhar cansados,

Belo percorria, guiado pela Dor,
O negro mundo que aos pés calcava,
E onde escarrava todo o seu rancor!...

Ninguém o compreendia nem amava...
E quem no amasse apenas um só dia,
Eis o que ele no mundo procurava...

A saudade o alegrava e entristecia...
É que ela faz a dor e o prazer,
Como a mesma luz faz a noite e o dia...

Quando com nojo olhava o seu sofrer,
Do lindo sonho alumiava a imagem
Com a luz baça dum suspiro a arder...

Nesta tempestuosa e longa viagem,
Belo viu o monte onde a soidão pranteia,
Como quem vê no céu uma miragem!...

Com o auxílio da luz da lua cheia,
Subiu depressa a encosta ao seu clarão,
Como atraído por canto de sereia.

Deste modo alcançou a solidão
Onde nós o encontramos a cantar,
Co'o seu olhar, a luz duma canção.

Belo consumia horas a pensar...
Talvez dali seu canto magoado
Atraísse o éter que nos faz sonhar...

Ele queria adormecer cansado;
Talvez pra não tornar a despertar,
Nesse alto monte, dum sonhar doirado.

Quando Belo estava a meditar,
Em cima duma rocha escaveirada,
Ouviu na areia um lírio suspirar...

E, ao ver do lírio a face descarnada,
Disse: «A tua sorte, flor, é igual à minha;
Cantas de noite e choras n'alvorada...

Como tu vives, flor, aqui sozinha,
Mais branda e doce do que o próprio arminho,
Nessa orfandade triste d'avezinha

Que viu, de noite, à beira dum caminho,
Negro ladrão roubar, às escondidas,
Sua linda mãe que lhe aquecia o ninho!

Não sentes d'avezinha essas feridas,
Abertas pela mão da desventura,
Que nem das flores poupa as tenras vidas?!...

Tu tens um coração feito d'alvura...
Eu bem no sinto, a medo, palpitar
Adentro dessa pálida espessura.

Ainda te ouvi agora suspirar...
Tens alguma paixão n'alma oprimida,
Que só a aurora possa acalentar?!

Pega esta lágrima no chão vertida,
Abandonada... e olha-a com fervor,
Que nela vai a parte de uma vida...

Tenho por ti, ó minha casta flor,
O clarão mais ideal, mais puro e santo,
Da fina essência do meu grande amor!

Tu não viste qual foi o meu espanto,
Ao ver-te seca e só; mas d'ora avante
Regar-te-ei com água do meu pranto...

Viver junto a teu lado, ó casta amante!
E a mais nada a vida se resume,
Neste alto monte, do lidar distante...»

No lírio despertou um terno lume...
E, no peito de Belo indo poisar,
Envolve o monte em nuvens de perfume.

Belo era f'liz. Já tinha quem amar...
Mas, quando o embriagava o aroma fino,
Tenuíssima luz o fez sonhar...

Julgou ouvir, num sonho diamantino,
Preciosíssimas Ninfas a cantar
Na água azul dum lago cristalino.

E, junto ao lago, mil aves a voar,
De lindíssimas cor's variegadas,
Desafiavam as Ninfas a cantar...

Era a escolha das Ninfas namoradas...
Aves e flor's disputavam assim
As suas meigas e ternas bem-amadas.

Belo torcia-se num ansiar sem fim,
Ao ver estátuas d'amor, misteriosas,
Desvelarem, sorrindo, o seu marfim;

As suas pernas níveas, vaporosas,
Braços de neve e lua, que num instante
Sumiam-se nas águas espumosas...

Tudo o que Belo olhava era brilhante...
É que nos basta, Deus, um só sorrir
Pra que tudo nos tenha amor constante!

Belo doirava os olhos do Porvir...
E nele via um trono de fulgor,
Aureolado d'estrelas a fulgir!...

E as Ninfas, cobertas d'esplendor,
Caminharam pra Belo, ao som de cantos,
Num estonteamento de furor!

O pobre amante, vendo tais encantos,
Ébrio d'amor, de gozo e de delírio,
Solta na face a água de seus prantos!...

Belo sentiu-se num segundo empírio!...
E, n'agonia dum eterno beijo,
Dessa agonia canta o seu martírio...

A sombra falsa e irónica do pejo
Desfez-se logo, nesse mar de gozo,
Perante o sol terrível do Desejo!

Belo achava-se alegre e venturoso,
Naqueles braços d'ideal brancura,
Quando sugava, em lábio voluptuoso,

Esse licor de mel e d'amargura,
Que dá mil vidas que só duram horas,
Que acorda a lua numa noite escura!...

À luz doirada e suave das auroras,
Belo e as Ninfas lançaram-se nas águas,
Cantando, ao vento, mil canções sonoras!

O sonhador bebia as claras águas
Desse lago d'amoras e d'essências,
Onde lavava as suas fundas mágoas.

Havia no lago mil fosforescências
Que davam tons estranhos, ideais,
Nas mimosas e brancas saliências,

Nesses montes de mel e de cristais,
De suicídios, ódios e vinganças,
Sob uma nuvem d'esquecidos ais!...

A boa alma cultiva as rosas brancas...
E nossas flores mandam-se em suspiros,
Que neles vão as nossas esperanças...

Belo sentia prazeres e martírios
Nas prateadas brumas do seu sonho,
Feito de nuvens brancas e de lírios.

Uma das Ninfas, com olhar risonho,
Lançou-lhe um beijo em brasa, encandescente,
Que seu lábio tornou como um medronho.

E o desejo, em forma de serpente,
Triturava-lhe o peito com ardor,
Ao seduzir a flor mais inocente.

Belo cheirava a rosa do furor...
Olhou pra si, e viu-se todo ornado
De lindos corações feitos d'amor...

No seu peito doente, amarelado,
Onde lutaram furiosos mares,
Palpita o coração meio cansado...

Belo julgou subir por esses ares,
Numa nuvem dulcíssima de luz,
Soprada pela voz de mil cantares!

Quando pensava estar já com Jesus,
Fere-lhe a vista um raio alucinado:
Era do dia a impertinente luz...

Estremeceu... olhou sobressaltado...
E viu o cão que a seus pés dormia
Um sono solto, leve e sossegado...

Tinha dormido acaso?... Sonharia?...
Nisto Belo pensava despeitado,
E a ideia do sonho o entristecia...

Belo, doido, olha o monte escaveirado...
Que surpresa sentiu o sonhador,
Ao ver o lírio que lhe teve amor
Bater as asas para o céu doirado!...

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Belo
in Belo
1896
[Belo | À minha alma | Sempre |
Terra Proibida | 1997 |
ed: Assírio & Alvim]
Teixeira de Pascoaes

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