falta por aqui uma grande razão  
uma razão que não seja só uma palavra  
ou um coração  
ou um meneio de cabeças após o regozijo  
ou um risco na mão  
ou um cão  
ou um braço para a história  
da imaginação  
  
podemos pois está claro  
transferir-nos  
imaginar durante um quarto de hora  
os séculos que virão  
— os séculos um  
e dois  
da colonização —  
depois  
depois é este cair na madrugada ardente  
na madrugada de constantemente  
sem sol  
e sem arpão  
  
faltas tu faltas tu  
falta que te completem  
ou destruam  
não da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e obrigada  
— não, de nenhuma maneira resultante!  
  
nem mesmo o amor  
não é o amor que falta  
  
falta uma grande realmente razão  
apenas entrevista durante as negociações  
oclusa na operação do fuzilamento cantante  
rodoviária na chama dos esforços hercúleos  
morta no corpo a corpo do ismo contra ismo  
  
falta uma flor  
mas antes de arrancada  
  
falta, ó Lautréamont, não só que todo o figo coma o seu burro  
mas que todos os burros se comam a si mesmos  
que todos os amores palavras propensões sistemas de palavras e de propensões  
se comam a si mesmos  
muitas horas por dia até de manhã cedo  
até que só reste o a o b e o c das coisas  
para o espanto dos parvos  
que aliás não estão a mais  
  
isso eu o espero  
e o faço  
junto à imagem da  
criança morta  
depois que Pablo Picasso devorou o seu figo  
sobre o cadáver dela  
e longas filas de bandeiras esperam  
devorar Picasso  
que é perto da criança, ao lado da boca minha  
  
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in [Uma grande razão - os poemas maiores | 2007 |  
ed: Assírio & Alvim]  
Mário Cesariny

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